-> observações de campo II <-

pensar em escrever vem me dando enjoo
as palavras me parecem aquela roupa velha
que tantas vezes vesti pra te ver aos domingos
no finalzinho da tarde
desgastadas: a roupa e as palavras

notei dia desses que ela também me apertava
- um pouco mais que de costume -
penso
"acho que engordei"
expandi: corpo e mente em alinhamento
calada, assombrada pelo eclipse

de surpresa, me comprei uma saia nova
florida, estampa um pouco de gringa
me chamaram pra viajar
me cambié 
cantarolei entre cascalhos e cajus [naxi em yanomami]

à beira do lago me deito:
saia florida de turista,
boca vazia,
olhos coloridos
pelas flores da saia
as formas dos cajus e mangas
a temperatura das águas
a direção do vento

conforme foi escurecendo,
compreendi que estava em terras mágicas,
outra via láctea
não sei a língua

tento acostumar os ouvidos,
não sei a dança.

era lua minguante
miro usando lunetas nos olhos
compreendo que sou viajante
tenho nos pés e nas mãos
a mesma poeira de todas as existências:

pó de areia::..
pó de estrela::..
pó de gente::..

não represento, muito menos me significam:
apenas sou

ainda à beira do lago,
sinto que me observam
na/da
s-u-p-e-r-f-í-c-i-e

dois olhos de jacaré brilham no escuro,
olhando pra mim

por encantamento,
os olhos de jacaré se fundem com os meus:
-> recebo visão noturna:
raposa na serra do sol
comunidades imaginadas desde cunhatã
fonte da sabedoria selvagem
que na boca sorvo feito fruta suculenta
me alimento, me adentro

continuo calada,
as palavras permanecem pó,
não quero usar roupa velha

então fico na orla
olhando o rio branco passar...
a temperatura d'água...
a direção dos ventos...
a cor do céu...
a dança...
a língua...

aos que me pedem palavra,
digo apenas que tudo aconteceu de verdade:
o enjoo, a viagem, o corpo maior, os olhos de jacaré brilhando no escuro, o pó, a roupa e o silêncio.

certifico e dou fé.

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